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A Extensão da Imunidade Tributária Recíproca às Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista.

Imunidade Recíproca - Sociedades de Economia Mista e Empresas públicas.

21 min de leitura

Trata o presente artigo acerca da extensão da imunidade tributária recíproca às empresas estatais[1] – sociedades de economia mista e empresas públicas. Recentemente, inclusive, em sede de Repercussão Geral, o Supremo Tribunal Federal – STF, manifestou-se a respeito da controvérsia e decidiu no sentido de reconhecer a extensão da imunidade tributária recíproca às empresas estatais, caso sejam satisfeitos certos requisitos fixados pela própria jurisprudência do STF, conforme iremos nos debruçar adiante.[2] Deste modo, cabe a nós, a partir de uma perspectiva exclusivamente cientifica, analisarmos a lisura jurídica da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, o que nos impõe, como é natural de toda atividade científica, o dever inescusável de fundamentação, isto é, de justificação da posição ora adota, seja ela em consonância com a jurisprudência ou doutrina majoritárias.

É comum que os debates acerca das empresas estatais acarretem divergências entre os cientistas do Direito e, igualmente, entre seus aplicadores, o que é possível verificar em quase todo assunto atinente às empresas estatais; isto é uma manifestação da dificuldade que os juristas e operadores do Direito enfrentam em face da compreensão do regime jurídico que regula as mencionadas entidades integrantes da Administração Pública Indireta.

Justamente por conta disso, entendemos que as respostas apresentadas aos questionamentos acerca das empresas estatais são determinadas, fundamentalmente, pelas premissas adotadas no que se refere ao regime jurídico incidente. É dizer, portanto, que a compressão acerca da natureza jurídica e do regime jurídico das empresas estatais é crucial para explanação de qualquer ponto de vista referente à esta temática.

Como consequência, antes de adentrarmos no imo da controvérsia – que diz respeito a extensão da imunidade tributária recíproca às empresas estatais – somos forçados, por apreço a coerência lógica do raciocínio, a tecer algumas considerações sobre o regime jurídico das empresas estatais, bem como se faz necessária a análise das funções que estas entidades podem, ou não, exercer. Antecipa-se, que a posição ora adotada se afasta do entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência, assim como destaca-se que a conclusão será fruto do entendimento a respeito da natureza das chamadas “empresas estatais prestadoras de serviço público.”

É importante frisar, que em nenhum momento, é pretensão deste artigo apresentar uma “verdade absoluta” sobre o tema. Pelo contrário, o intuito é de que se possa apresentar entendimento sob nova perspectiva e, deste modo, fomentar o debate jurídico, sempre com os ouvidos abertos a críticas e novos argumentos que, eventualmente, passaram despercebidos durante a pesquisa realizada. No mais, vale registrar o profundo respeito aos posicionamentos divergentes acerca da matéria, os quais, indubitavelmente, forneceram grandes contribuições para o estudo da temática em comento, de modo a tornar o assunto inteligível e propício a novas reflexões. Nesta toada, se passa a expor o pensamento.

A partir de uma concepção teleológica do Estado,[3] pode-se concluir que a finalidade do ente estatal é, em suma, a realização do interesse público.[4] Segue-se daí que a própria justificava da existência do Estado é, portanto, seu dever inafastável de tutelar dito interesse. Com isso, de plano, se pode inferir que aqueles sujeitos que exercem atividades estatais, enquanto estiverem exercendo-as, não devem se guiar a partir de seus interesses privados, porquanto possuem o dever de zelar pelo interesse público. É daí que decorre, em apertada síntese, a noção de função pública, bem como a clássica lógica de dever-poder, segundo a qual os poderes conferidos pela ordem jurídica ao Estado possuem a finalidade de fornecer ao ente estatal instrumentos suficientes para tutelar o interesse público de forma efetiva, de tal maneira que os poderes são empregados para que o Estado cumpra seus deveres.[5]

O Estado poderá cumprir seus deveres, que lhe foram atribuídos pela ordem jurídica, de forma direta, isto é, por meio de seus órgãos, ou, ainda, poderá criar pessoas jurídicas para auxiliá-lo no cumprimento de suas obrigações jurídicas, de tal maneira que estas entidades dotadas de personalidade jurídica possuem a finalidade de auxiliar o Estado no exercício de suas atividades e, portanto, possuem, outrossim, o dever de buscar aquele mesmo interesse tutelado pelo ente estatal, é dizer, o interesse público.

Sendo assim, o aparelho estatal é composto, por óbvio, pelo próprio Estado (União, Estados-membros, Municípios e Distrito Federal), que, com sua estrutura orgânica, integra a chamada Administração Pública Direita, e, também, pelas pessoas jurídicas criadas pelo Estado para auxiliá-lo em suas missões, sendo estas, precisamente, Autarquias, Fundações Públicas, Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista, que integram a denominada Administração Pública Indireta, conforme depreende-se do art. 4º, inciso II, do Decreto-lei nº 200/67.

Esse é um traço de supina relevância para o correto entendimento das noções lógicas que permeiam as empresas estatais, a saber: as sociedades de economia mista e empresas públicas são entes auxiliares do Estado, isto é, são instrumentos empregados pela Administração Pública Direta para melhor salvaguardar o interesse público. Bem por isso, de plano, podemos concluir que: conquanto as empresas estatais adotem forma empresarial – própria, como sabemos, do Direito Privado – elas, de forma alguma, se submetem integralmente, mesmo quando exploram atividade econômica, ao regime jurídico aplicável aos particulares, posto que exercem suas atividades, obrigatoriamente, com vistas ao interesse público, o que não se aplica aos administrados.

Nesse sentido, leciona o proeminente jurista Celso Antônio Bandeira de Mello:

Com efeito, os sujeitos que nascem do sopro estatal, seja quando instaurados com personalidade de direito público, seja quando criados com personalidade de direito privado, têm como traço essencial, como marca que os distingue de quaisquer outros, como signo que lhes preside a existência e comanda a intelecção de suas naturezas, o fato de serem criaturas instrumentais do Estado; são seres que gravitam na órbita pública. Estão, tanto como o próprio estado, atrelados à realização de interesses do todo social, e os recursos que o embasam são, no todo ou em sua parte majoritária, originários de fonte pública. Tais criaturas existem para que o Estado, por seu intermédio, conduza de modo satisfatório assuntos que dizem respeito a toda coletividade. (…). Ditas criaturas, pois, ainda quando modeladas sob figurino privado, não são, portanto, da mesma cepa que as demais pessoas de direito privado. A razão de existir, os fins em vista dos quais são criadas, os recursos econômicos que manejam, os interesses a que servem (e podem servir), são manifestamente distintos e, sob muitos aspectos, até mesmo diametralmente opostos ao daqueloutras. Bastaria esta evidência para perceber-se que não poderiam mesmo estar submetidas a igual disciplina jurídica.[6]

Trata-se de uma característica que deve presidir qualquer debate acerca das empresas estatais, visto que nos auxilia a compreender qual a razão de ser, isto é, qual a finalidade, das empresas públicas e sociedades de economia mista, o que, por conseguinte, serve de bússola para entendermos seu regime jurídico. Imbuídos nestas considerações, se passa, então, a escrutar as atividades que podem ser exercidas pelas chamadas empresas estatais.  

Tradicionalmente, a doutrina, de forma pacífica, inclusive, firmou entendimento de que as empresas estatais podem exercer duas atividades de natureza absolutamente distintas, cumpre dizer: (i) exploração de atividade econômica, quando se faça necessária intervenção estatal direta no campo econômico; e (ii) prestação de serviços públicos.[7] São atividades, como sabemos, que possuem diferenças jurídicas abissais entre si, de maneira que ambas são inconfundíveis.[8]

No que toca a exploração de atividades econômicas, vale lembrar que seu exercício, de acordo com o que prescreve o art. 173, caput, da Constituição da República, é reservado aos particulares, de modo que, em regra, cabe à iniciativa privada a exploração destas atividades, sendo, a princípio, vedada intervenção estatal no campo econômico.[9] Existem diversas outras atividades, todavia, que a ordem jurídica atribuiu titularidade ao Estado, de tal modo que sua prestação eficiente se constitui num verdadeiro dever do ente estatal, bem como seu exercício pelos particulares só se torna possível mediante outorga do titular do serviço; são os chamados serviços públicos.[10] Não devemos olvidar, ainda, daquelas atividades que admitem duplo regime, isto é, constituem-se como serviços públicos, uma vez que titularizadas pelo Estado, no entanto, os particulares também podem exercê-las como sendo atividades econômicas, tal como ocorre com a educação, saúde e previdência, por exemplo – trata-se do que Carlos Ari Sundfeld denominou de serviços sociais.[11]

Não obstante a Constituição tenha estabelecido que a exploração de atividade econômica é reservada, em regra, aos particulares, é possível, sim, que o Estado venha a intervir diretamente no domínio econômico e, deste modo, passe a explorar atividades próprias deste campo privado. Trata-se, no entanto, de medida excepcional. Vale dizer, de acordo com o que reza o art. 173, caput, da Constituição da República, “(…) a exploração de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (…).” Nesta hipótese, o Estado ingressa no domínio privado para explorar diretamente uma atividade econômica, sob o fundamento de realizar aqueles dois valores constitucionais mencionados, de modo que não se restringe a mera regulação normativa da ordem econômica. Trata-se do que a doutrina chama de intervenção por participação.[12]

Nesse sentido, o art. 173, §1º, da Carta Magna, dispõe que: “a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços (…)”, o que nos leva a concluir que as empresas estatais são as pessoas jurídicas por excelência para viabilizarem a intervenção do Estado no domínio econômico; além disso, conclui-se que é apenas através delas que poderá fazê-lo, visto que o texto constitucional, a partir de uma interpretação a contrario sensu do dispositivo supramencionado, não permite que a intervenção por participação se dê pelo intermédio de Autarquias, Fundações Públicas, tampouco pela própria Administração Pública Direta.

A disposição constitucional, inclusive, é digna de aplausos. Ora, tendo em vista que o Estado, mediante empresas estatais, irá ingressar em campo próprio dos particulares, é necessário que seu regime jurídico se ajuste a esta espécie de atividade, pois é imprescindível que as sociedades de economia mista e empresas públicas estejam submetidas, pelo menos parcialmente, ao Direito Privado, de modo a afastar prerrogativas e limitações especiais inerentes ao Direito Público, sob pena do ingresso do Estado no campo econômico ser fonte de concorrência desleal e inviabilizar o exercício da atividade econômica pelo próprio Estado e, com isso, prejudicar a tutela do interesse público.

Sendo assim, tendo em vista que será necessária submissão parcial ao Direito Privado, é de todo mais lógico que a intervenção no domínio econômico seja feita por empresas estatais, posto que estas, malgrado integrem a Administração Indireta, são pessoas jurídicas de Direito Privado, é dizer, possuem forma de Direito Privado, de tal modo que há plena harmonia entre a forma jurídica das empresas estatais e o regime jurídico próprio do domínio econômico.

Não podemos nos esquecer, contudo, que a sobredita submissão ao regime jurídico de Direito Privado é apenas parcial; é que, ao ingressar no domínio econômico, a situação do Estado não é igual ao dos particulares exploradores de atividade econômica. Estes o fazem de acordo com seus interesses individuais; aquele, por sua vez, o faz em busca de tutelar o interesse público, isto é, a segurança nacional ou relevante interesse coletivo, de modo que as diferenças de interesses tutelados entre si são ululantes.

Além disso, é indispensável lembrar que as empresas estatais são compostas total ou majoritariamente por verbas públicas, portanto, seria uma completa vulneração ao interesse público pensar no manejo das disposições do erário sem que haja incidência de normas de direito público, as quais possuem a finalidade de proteger o administrado contra a má gestão da coisa pública.

Deste modo, supor que as empresas estatais exploradoras de atividade econômica sejam regidas completamente pelo Direito Privado, é um erro crasso, uma vez que ignora as noções básicas acerca de sua natureza. Inclusive, o próprio texto constitucional, como bem atenta Celso Antônio Bandeira de Mello, impõe às empresas estatais a observância de diversas normas de Direito Público.[13]

Sem embargo, é inegável que a submissão parcial ao Direito Privado é imprescindível, sobretudo para afastar prerrogativas estatais que poderiam precipitar a concorrência desleal e, assim, causar desequilíbrio econômico, bem como a efetiva exploração da atividade econômica exige a libertação de algumas amarras de Direito Público, com o escopo de não impedir o exercício da atividade em comento.[14] Estas questões, inclusive, não passaram despercebidas pelo constituinte de 1988, que positivou a necessidade das empresas estatais se submeterem, no que couber, por óbvio, ao regime jurídico próprio de empresas privadas (art. 173, §1º, inciso II).

Nessa tocada, no que se refere a imunidade tributária recíproca, todas as considerações aqui traçadas parecem evidenciar que a referida imunidade não é passível de extensão às empresas estatais exploradoras de atividade econômica, justamente porque seria uma prerrogativa estatal que ensejaria concorrência desleal e, em detrimento, inclusive, ao interesse público.

Afinal, como seria possível competir com uma empresa imune a tributação por meio de impostos? Aliás, ao regular a intervenção por participação no domínio econômico, o art. 173, §2º, da Constituição prescreve que: “as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.” Por isso, tendo em vista que os particulares que exploram atividade econômica não gozam de imunidade tributária recíproca, por força do aludido mandamento constitucional, a imunidade mencionada não deve ser estendida às empresas estatais exploradoras de atividade econômica.

A resposta, no entanto, não é a mesma caso se trate de uma empresa estatal prestadora de serviço público. Antes de tratar da questão da imunidade tributária recíproca das denominadas empresas estatais prestadoras de serviço público, é indispensável que se faça, ainda que de forma não exaustiva, breves considerações sobre a natureza jurídica e o regime jurídico dessas empresas estatais.

Como afirmado anteriormente, a doutrina ostenta entendimento pacífico de que as empresas estatais não estão restritas a exploração de atividade econômica, pois é lícito a elas, igualmente, realizarem a prestação de serviços públicos,[15] de tal maneira que a atuação das empresas estatais não estaria restrita apenas a uma espécie de atividade. Nesse sentido, entende-se que a prestação de serviços públicos por pessoas jurídicas de Direito Privado integrantes da Administração Indireta é salutar, visto que, conforme os defensores deste respeitável entendimento, as formas de Direito Privado tornam a gestão do serviço mais ágil e flexível, o que prestigia o princípio da eficiência.[16]

Não obstante esse consolidado entendimento, o qual, vale destacar, é endossado por brilhantes juristas, ousa-se dissentir, uma vez que, conforme o exposto, empresas estatais prestadoras de serviços públicos são, na verdade, como bem atentou o saudoso Professor Ricardo Marcondes Martins,[17] contrafações de autarquias.

O texto constitucional, ao se referir às empresas públicas e sociedades de economia mista, o que o fez no art. 173, §1º, referiu-se a elas, exclusivamente, na esteira do dispositivo constitucional que diz respeito a intervenção direta do Estado no domínio econômico, de modo a indiciar que, caso seja necessária intervenção estatal no campo próprio das atividades privadas, o Estado deverá fazê-lo por meio de empresas estatais, o que representa, como já destacado, uma medida de grande coerência, haja vista a compatibilidade entre o regime jurídico ao qual o Estado será submetido, inevitavelmente, e a forma jurídica empresarial das empresas estatais.

Lançando mão de uma interpretação a contrario sensu do dispositivo constitucional mencionado, bem como a partir das noções lógicas que permeiam o Direito Administrativo, entendemos que a criação de empresas estatais, em contraponto ao que defende a doutrina tradicional, está limitada a exploração de atividades econômicas, é dizer, só é cabível às empresas públicas e sociedades de economia mista a exploração de atividades desta natureza, de maneira que não estão autorizadas a prestarem serviços públicos.

Nesse sentido, aliás, vale destacar que não há previsão normativa expressa que dê fundamento de validade à criação de empresas estatais para a prestação de serviços públicos, bem como não encontramos qualquer fundamento implícito que contrarie a norma extraída a partir da interpretação a contrario sensu do texto normativo positivado no art. 173, §1º, da Constituição da República.[18]

Aliás, já se posicionou Toshio Mukai, in verbis:

No Brasil, em face do texto constitucional, as empresas públicas (stricto sensu) e as sociedades de economia mista só podem ser criadas legitimamente para a exploração de atividades econômicas. Aqui, sim, portanto, a forma e o fundo se harmonizam, havendo, então, perante o Direito, um aspecto essencial a ser considerado: é o direito privado pura que, em grande parte, rege tais sociedades. Não há que se falar aqui em simulação, nem em aparência de direito[19]

Além disso, vale frisar que há toda uma lógica em prever pessoas jurídicas de Direito Privado para explorarem atividades econômicas, no entanto, qual a lógica em permitir que tais pessoas jurídicas prestem serviços públicos ou exerçam qualquer outra atividade pública? No primeiro caso, há plena compatibilidade e coerência entre a forma jurídica das empresas estatais e a natureza da atividade exercida. Na segunda hipótese, todavia, não se configura a mesma compatibilidade e coerência entre a forma privada das empresas estatais e a situação jurídica própria dos serviços públicos, na qual deve imperar, como bem se sabe, o regime jurídico de Direito Público em sua plenitude.

É justamente nesse ponto que reside a contrafação administrativa,[20] significa dizer, o conceito jurídico de empresa estatal traz consigo, inevitavelmente, um certo influxo do regime jurídico de Direito Privado, o que, por lógica, não se coaduna com a situação jurídica referente a prestação de serviço público. Trata-se, portanto, de um conceito jurídico inadequado para qualificar esta situação jurídica, uma vez que invoca uma espécie de regime incompatível com a situação referida, de modo a esconder o conceito jurídico adequado, afastando, igualmente, o regime jurídico adequado para o caso.

O conceito jurídico correto, que foi escondido pelo emprego indevido do conceito de empresa estatal para qualificar a situação de serviço público, é o conceito jurídico de Autarquia – entidade integrante da Administração Pública Indireta e que ostenta personalidade jurídica de Direito Público, assemelhando seu regime jurídico, em muitos aspectos, com a da própria Administração Direta.

Vale lembrar que as autarquias são as pessoas jurídicas da Administração Indireta por excelência para exercerem atividades tipicamente estatais, tal como a prestação de serviços públicos.[21] Deste modo, o regime jurídico correto é o regime jurídico próprio das autarquias, uma vez que este é o conceito jurídico adequado ao caso em tela e, por isso, é que se torna possível afirmar que “todas as empresas estatais constituídas para prestar serviço público, construir obra pública ou realizar função pública são contrafações de autarquias.”[22]

Configurada a contrafação administrativa, é preciso, por óbvio, solucioná-la, o que se revela de grande importância, haja vista o elevado número de empresas públicas e sociedades de economia mista que foram criadas com o intuito estranho a exploração de atividade econômica. Nesse sentido, tendo em vista que se trata de uma contrafação administrativa aparente, a solução é feita através da correta interpretação jurídica acerca da natureza jurídica e, consequentemente, do regime jurídico das chamadas empresas estatais prestadoras de serviços públicos.

A solução é aplicar o conceito jurídico correto, adequado, ou seja, o conceito jurídico de Autarquia e, por conseguinte, aplicar-se o regime jurídico desta em tudo que diz respeito às empresas estatais prestadoras de serviços públicos. Vale dizer, a solução é a substituição dos conceitos jurídicos: substitui-se o conceito jurídico de empresa estatal pelo conceito jurídico de autarquia, o que culmina, evidentemente, na substituição do regime jurídico, de maneira que “(…) em vez de se invocar o regime jurídico próprio das empresas estatais, invoca-se, para essas entidades, o regime jurídico próprio das autarquias.”[23]

O regime jurídico das empresas estatais, portanto, passa a ser o mesmo regime jurídico das autarquias, de modo que é afastada, com isso, qualquer incidência do Direito Privado, logo, o regime jurídico destas duas entidades da Administração Indireta é, de forma integral, o regime de Direito Público.

Nesse sentido, vale transcrever os ensinamentos de Ricardo Marcondes Martina, a saber:

Defende-se aqui posição mais radical: elas se submetem integralmente ao direito público. Todas empresas estatais constituídas para prestar serviço público, construir obra pública ou realizar função pública são contrafações de autarquias. Perceba-se: não há – ao contrário do que ocorre com as exploradoras de atividade econômica -, critério racional para a submissão ao direito privado. A instituição para essas finalidades, de empresa estatal, e não de autarquia, consiste em óbvia fuga para o direito privado, não admitida pela Constituição. A solução é desprezar o rótulo: essas empresas só são sociedades de economia mista e empresas públicas no nome; em todo o resto são autênticas autarquias.[24]

Não se ignora que a equivalência de regime jurídico acarretará, de forma inevitável, uma maior publicização da Administração Pública Indireta, porquanto, como dito, será afastado, por completo, o influxo de normas de Direito Privado, o que se pressente ser um ponto ensejador de críticas, sob o fundamento de tornar a Administração Pública Indireta burocrática e inflexível, haja vista o fato notório de que grande parte das normas jurídicas de Direito Público imputam restrições especiais, mais rigorosas, aos agentes responsáveis pela perseguição do interesse público.

Essa publicização, todavia, não é digna de tão severa censura. Pelo contrário, ela se faz indispensável para o correto desempenho das funções públicas, sob pena de vulnerar a adequada perseguição do interesse público. É que, como assentado no início desta exposição, a Administração Pública, Direta e Indireta, está adstrita ao dever inescusável de salvaguardar o interesse público. Como consequência deste dever e com fundamento na regra da supremacia do interesse público, a Administração é submetida a restrições especiais, são as amarras de Direito Público, as quais compõem verdadeiros limites ao administrador e que tantas vezes são criticadas por engessarem o exercício da função administrativa.

Todas essas restrições especiais, contudo, possuem uma nobre finalidade que as justifica, a saber: buscam proteger o interesse público contra o mau exercício da função pública, que é feita, em última medida, por pessoas físicas. O agente público não pode exercer sua função ao seu talante, assim, para evitar que a adequada tutela do interesse público dependa tão somente da probidade e do espírito público do administrador, as normas de Direito Público buscam conduzir o exercício da função estatal, o que é feito, justamente, a partir da imposição de restrições especiais.[25] Por exemplo: caso a Administração necessite contratar pessoal para ocupar cargos e empregos públicos, deverá realizar concurso público, de modo que não pode selecionar ao seu bel-prazer funcionários, o que se constitui, indubitavelmente, numa restrição que garante impessoalidade e eficiência em prestígio ao princípio republicano.

Essa é a lógica que justifica e torna razoável a imposição de diversas amarras ao exercício da função pública, o que é inerente ao Direito Público, de modo que onde o interesse público se fizer presente, as normas jurídicas próprias deste regime estarão lá para protegê-lo contra o mau exercício da função. Substituir o Direito Público pelo Direito Privado pode tornar a Administração Pública mais ágil e, consequentemente, tornará a gestão da coisa pública mais flexível, ao mesmo passo, no entanto, serão afastadas grande parte das proteções jurídicas da coisa pública; e tratando-se de uma Administração marcada, historicamente, por uma deplorável tradição autoritária, bem como maculada por altos índices de corrupção, afastar o Direito Público, afastar a proteção do interesse público, não parece opção adequada.

À guisa de conclusão, a qual emerge como efeito natural das premissas aqui adotadas, entendemos que a imunidade tributária recíproca é passível de extensão às empresas estatais prestadoras de serviço público, uma vez que, como afirmado exaustivamente no presente estudo, estas entidades são contrafações de autarquias, é dizer, substancialmente, são autarquias, sendo seu rótulo desprezível.

Em outras palavras: tendo em vista que as autarquias gozam de imunidade tributária recíproca (art. 150, §2, da Constituição), e que as empresas estatais prestadoras de serviço público são, em essência, autênticas autarquias, de modo que o regime jurídico aplicável à estas deve ser estendido àquelas, a coerência lógica obriga a reconhecer que as empresas estatais em comento devem gozar, igualmente, da imunidade tributária recíproca.

Ora, haja vista que não deve haver diferença no que toca o regime jurídico aplicável, não há lógica em reconhecer a imunidade tributária às autarquias e, no mesmo passo, afastar tal benefício tributário das empresas estatais prestadoras de serviço público.

Não foi esse, todavia, o entendimento manifestado pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE nº 1.320.054/SP, o qual estava submetido ao rito dos Recursos Repetitivos, de modo que a decisão foi proferida em sede de Repercussão Geral. Cumpre dizer, o STF fixou a seguinte tese:

As empresas públicas e as sociedades de economia mista delegatárias de serviços públicos essenciais, que não distribuam lucros a acionistas privados nem ofereçam risco ao equilíbrio concorrencial, são beneficiárias da imunidade tributária recíproca prevista no artigo 15, VI, a, da Constituição Federal, independentemente de tarifa como contraprestação do serviço.

Pelas razões expostas durante o texto, não é possível endossar tal entendimento, bem como não se ratifica o entendimento da doutrina majoritária acerca da natureza jurídica e do regime jurídico das empresas estatais prestadoras de serviço público. Todavia – e isto é importante frisar – de maneira alguma há intenção de encerrar e exaurir o debate sobre a matéria, tampouco se sustenta que o ponto de vista aqui apresentado seja o único razoável, de maneira a desprezar opiniões diversas. O intuito é justamente o contrário, isto é, fomentar o debate, com o escopo de aprimorar o conhecimento científico acerca da matéria e, por conseguinte, zelar pela evolução do pensamento jurídico e das instituições.

Reconhece-se que a questão é polêmica e que existem entendimentos contrários ao presente, conforme exposto, que são de extrema relevância e amparados em sólidas premissas jurídicas, sendo, por isso, dignos de inesgotável respeito. Ao estudar a matéria, porém, há suficientes razões que corroboram o ponto de vista que exposto, no entanto, para se saber, de fato, se esta é a interpretação jurídica correta, é indispensável o papel exercido pela crítica científica. Afinal, se a sociedade brasileira é uma comunidade civilizada, é a partir do debate que se pode alcançar a evolução científica.

Por derradeiro, um ponto que, desde já, é digno de uma meditação mais aprofundada é, justamente, aquele que diz respeito às implicações práticas decorrentes da posição aqui adotada, de modo a analisar as consequências acarretadas pela extensão das imunidades tributárias às empresas estatais prestadoras de serviço público, especialmente no que tange a eventuais efeitos nefastos ao interesse público, bem como deve ser aprofundada a possibilidade da extensão mencionada, sobretudo considerando, com maior detença, a natureza jurídica do instituto da imunidade tributária. Estes pontos, todavia, merecem um mergulho mais profundo para outro momento.


Autor: JOSÉ CARLOS DA ANUNCIAÇÃO. Advogado e historiador, especialista em direito administrativo e constitucional pela Escola Paulista de Direito – EPD, cursou mestrado pela Universidade Mackenzie em direito tributário.


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SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 5ª ed. São Paulo: Malheiros.


[1] Com o intuito de esclarecer os termos técnicos empregados, destacamos, desde já, que o signo “empresa estatal” será utilizado para referirmo-nos, indistintamente, às empresas públicas e sociedades de economia mista, haja mista o elevado número de semelhanças entre ambas entidades integrantes da Administração Pública Indireta. Em síntese: emprese estatal é o gênero, do qual empresas públicas e sociedades de economia mista são espécies. Para averiguar as distinções entre ambas pessoas jurídicas de Direito Privado v.: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 200-201.

[2] Trata-se da Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 1.320.054/SP; Órgão julgador: Plenário; Rel. Min. Luiz Fux. DJe: 06/05/2021.

[3] Sobre o tema: ALARCÓN, Pietro Jesus Lora. Ciência política, Estado e Direito Público. 2ª ed. São Paulo: Verbatim, 2014, p. 113-116.

[4] Sobre o conceito tradicional de interesse público: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 59-70. Para análise acerca da duplicidade de sentidos atribuídos ao termo, v.: HACHEM, Daniel Wunder. Princípio constitucional da supremacia do interesse público. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 162; OLIVEIRA, Pedro Dadalto. Manutenção da supremacia do interesse píublico. Revista Internacional de Direito Público – RIDP. Belo Horizonte, ano 5, n. 09, p. 171-212, jul./dez. 2020, p. 186-190.

[5] Por todos: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 72-73.

[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Sociedades de Economia Mista, Empresas Públicas e o regime de Direito Público. In: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Grandes temas de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 340-341.

[7] Nesse sentido, v.: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 205-206; FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 124-125; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 386.

[8] Sobre o tema, v.: MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria jurídica da liberdade. São Paulo: Editora Contracorrente, 2015, p. 190-195; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 42ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 815-818.

[9] Como bem pontuou, aliás, o notável administrativista Alexandre Santos de Aragão: “como as estatais são instrumentos da exploração pelo Estado de atividades econômicas, devemos lembrar que, com exceção dos monopólios públicos e serviços públicos, que já são atividades econômicas de titularidade do próprio Estado, ele só pode explorar as demais atividades econômicas nos casos de exigência da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo (art. 173, caput, CF/88), expressão daquilo que constitui, para a maioria da doutrina, o chamado princípio da subsidiariedade da intervenção do Estado na economia: o Estado só pode atuar como agente econômico quando for absolutamente necessário, em face da impossibilidade de os interesses públicos em jogo poderem ser atendidos pela iniciativa privada, e essa atuação (repise-se, com as exceções dos serviços e monopólios públicos) não pode excluir a atuação em igualdade de condições com a iniciativa privada (art. 173, § 1o, II).” ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de direito administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2013, p. 122.

[10] Para uma visão global acerca do serviço público como ferramenta de efetivação da fraternidade: PIRES, Luís Manuel. O Estado Social e Democrático e o serviço público: um breve ensaio sobre liberdade, igualdade e fraternidade. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 101-123.

[11] SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 78.

[12] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo, op. cit., p. 821.

[13] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Sociedades de Economia Mista, Empresas Públicas e o regime de Direito Público. In: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Grandes temas de direito administrativo, op. cit., p. 346-349.

[14] A propósito: MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 272-274.

[15] Além daqueles citados na nota de rodapé nº 7, outros notáveis juristas defendem a mesma posição, v.: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 21ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 475-477; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 408-410.

[16] Nesse sentido: ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo, op. cit., p. 122 e 126.

[17] Vale registrar que foram os textos de lavra do Professor Ricardo Marcondes que nos convenceram do posicionamento aqui adotado, de modo que iremos nos amparar em seus ensinamentos durante a exposição dos argumentos. Sobre os estudos do referido sobre o tema, v.: MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal, op. cit., p. 272-280; MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria das Contrafações Administrativas. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional. Belo Horizonte, ano 16, n. 64, p. 115-148, abr./jun. 2016, p. 139-140.

[18] MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à Luz da Constituição Federal, op. cit., p. 275-276.

[19]  MUKAI, Toshio. O Direito Administrativo e os Regimes Jurídicos das Empresas Estatais. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 283 apud MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à Luz da Constituição Federal, op. cit., p. 278.

[20] Sobre o conceito de contrafação administrativa: “Dá-se uma contrafação administrativa quando se emprega um conceito no direito administrativo equivocadamente e, ao fazê-lo, invoca-se, consciente ou inconscientemente, um regime jurídico incompatível com a situação qualificada pelo conceito. Quer dizer: a conotação é incompatível com a denotação pretendida. Fixado que o conceito jurídico se reporta a certo regime jurídico, a contrafação ocorre quando se emprega o conceito numa situação incompatível com esse regime. Pretende-se incluir na classe, na extensão, um elemento incompatível com o critério de pertinência, com a intensão. Não se trata, porém, apenas de um emprego equivocado. Emprega-se, por ignorância ou má-fé, um conceito no lugar de outro de modo que a situação rela fique disfarçada pelo conceito equivocadamente empregado. O equívoco, na contrafação, tem por efeito mascarar, disfarçar, esconder o conceito de fato aplicável, ou seja, o correto regime jurídico incidente. Enfatiza-se: a invocação do conceito incorreto, e do regime a ele associado, tem o efeito de camuflar o conceito correto e seu regime respectivo; atribui-se um sentido a uma referência descabida, deixando o sentido correto de lado. A contrafação importa, portanto, numa fraude.” MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria das Contrafações Administrativas. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, op. cit., p. 118-119.

[21] Nesse sentido, vale transcrever as ponderações feitas por Celso Antônio Bandeira de Mello: “É que se fez, ao meu ver, uso incorreto da sociedade de economia mista e da empresa pública. Fez-se uso delas para prestarem serviços que tinham de ser prestados pelas autarquias, porém através de um regime que não fosse cópia-carbono da Administração Central, um regime que fosse adaptado àquela autarquia. (…). A exploração de atividade econômica, esta, sim, ao meu ver, cabe prestá-las através de sociedades mistas e empresas públicas. (….). Por isso, entendo que serviço público não é para ser prestado por sociedade de economia mista, nem por empresa estatal. É para ser prestado através de autarquias, segundo regime especial, todo ele marcado por prerrogativas de autoridade, por restrições especiais na prestação dos serviços e sem nenhuma espécie de expectativa de lucro.” BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. “Natureza essencial das sociedades de economia mista e empresas públicas.” RDP 83/139-195. Ano XX. São Paulo, Ed. RT, julho-setembro/1987, p. 178 e 189 apud MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à Luz da Constituição Federal, op. cit., p. 277.

[22] MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal, op. cit., p. 277.

[23] MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria das Contrafações Administrativas. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, op. cit., p. 140.

[24] MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal, op. cit., p. 279.

[25] Sobre o tema, vale transcrever, novamente, os ensinamentos do Professor Ricardo Marcondes Martins: “Como o exercício da função pública sempre depende de um ser humano – pois o Estado, como qualquer pessoa jurídica, só age por meio de pessoas físicas -, faz-se necessário minimizar os riscos de o agente violar seus deveres funcionais. Boa parte das normas de direito público tem em vista esta missão: proteger o interesse público do mau exercício da função. Justamente porque tudo que se relaciona ao estado pertence, em última análise, ao povo (daí a etimologia da palavra república), existe um regime para proteger os interesses do povo em todas atuações estatais: como o dinheiro não é do agente, é do povo, o agente não é livre para gastá-lo como quiser; como os bens não dão do agente, são do povo, o agente não é livre para geri-los como quiser. O direito público é, em geral, um direito protetor da coisa pública. (…) o direito público existe para proteger a coisa pública e sempre que a Administração se fizer presente numa relação jurídica, faz-se necessária essa proteção. (…). É o que basta para evidenciar o absurdo: admitir a presença da Administração e a não incidência do regime protetor, deixando os interesses do povo à sorte de o agente ser honesto, probo, santo, é forma de legitimar a corrupção. Como a função pública consiste no dever de realizar da melhor forma possível o interesse público, elaborou-se um conjunto normativo para garantir que esse dever seja realizado, um conjunto normativo cuja missão é constranger o agente público, independentemente de ele ser honesto ou desonesto, santo ou demônio, a cumprir corretamente seu dever. A incompatibilidade entre a função pública e o direito privado é, também por isso, manifesta.” MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria jurídica da liberdade, op. cit., p. 121-122.


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